Inaptidão de doadores agrava crise no estoque de sangue do Hemoam

Por Anne Karoline Menezes e Vanessa Adna*

Por que os estoques do hemocentro do Amazonas estão sempre em estado crítico? A resposta para esse questionamento vai além do que traz o senso comum, com a noção simplista de que as pessoas não estão interessadas em doar sangue. Na realidade, uma grande parcela da população não é considerada apta a fazer a doação, seja por problemas de saúde, como anemia, ou situações que causam impedimentos temporários, como tatuagens e piercings recentes. Essa inaptidão, aliada a outros fatores, como a alta demanda de transfusões, resulta em estoques sanguíneos operando constantemente abaixo do necessário.

Em fevereiro deste ano, a Fundação Hospitalar de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas (Hemoam) divulgou que os estoques de sangue do tipo O estavam em estado crítico. Na ocasião, havia apenas 30 bolsas de sangue dos tipos O+ e O-, e o hemocentro operava com apenas 10% do estoque ideal. Segundo a Fundação, a principal causa do baixo abastecimento era a inaptidão dos doadores, isto é, doadores que por motivos diversos não estavam habilitados a doar sangue, embora tenham apresentado interesse em fazê-lo.

O órgão promove campanhas mensais para atrair doadores e conscientizar a população sobre a importância de ter o hemocentro abastecido. Os requisitos para se tornar doador, divulgados nas redes sociais do Hemoam, são: ter entre 16 a 69 anos, pesar mais de 50 quilos, ter dormido no mínimo 6 horas na noite anterior a doação e estar com boa saúde. No entanto, uma grande parcela dos interessados são reprovados na triagem e a doação não é concretizada.

De acordo com a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM), em março de 2024, 35% dos voluntários foram considerados inaptos para a doação de sangue, em um universo de quase 2 mil pessoas interessadas. Entre os problemas mais recorrentes diagnosticados na triagem estão a anemia e a pressão alta. O Hemoam tem uma meta diária de 250 bolsas de sangue, mas de forma frequente tem alcançado uma média de 120 doações, colocando a situação em estado crítico, com estoques 52% abaixo do necessário. O cenário compromete principalmente transfusões de sangue em hospitais públicos e particulares e a realização de cirurgias de emergência. No Amazonas, cerca de 230 transfusões são feitas diariamente e o hemocentro é responsável por abastecer todo o estado. 

Foto: Reprodução/ Redes Sociais

O especialista em biotecnologia e diretor técnico de Hemoterapia, Sérgio Roberto Lopes, ressaltou a urgência de manter o estoque de sangue abastecido, devido à demanda de distribuição atendida pelo hemocentro. “O Hemoam distribui os hemocomponentes (Concentrado de Hemácias, Concentrado de Plaquetas, Plasma Fresco congelado e Criopreciptado) para 29 hospitais de Manaus e 55 do interior do Estado”, afirmou. 

O profissional, que atua há 26 anos no Hemoam, revelou que a Fundação irá expandir a distribuição no próximo ano. “A partir de 2025 estará enviando o Plasma excedente para a Hemobrás com o objetivo de contribuir com a indústria nacional na produção de medicamentos hemoderivados”, concluiu o especialista.

Em períodos festivos, vésperas e pós-feriados a situação das doações fica ainda mais agravada e a procura dos voluntários diminui expressivamente. Segundo Nívia França, gerente de captação de doadores de sangue do Hemoam, “nesses dias de véspera e pós-feriado, geralmente temos uma queda muito grande no número de doações, o que reflete diretamente no abastecimento”. 

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A falta de doadores e a reprovação de voluntários na triagem contribui para um cenário preocupante de desabastecimento de sangue em todo o Amazonas. De acordo com uma pesquisa realizada pela própria Fundação em 2022, 40,39% dos candidatos a doação não passavam da primeira etapa da triagem, o exame de hematócrito, um teste que consiste em fazer um furinho no dedo para coletar sangue e verificar a porcentagem de células vermelhas (hemácias). Essa etapa é capaz de diagnosticar quadros de anemia, deficiência de minerais, doenças cardíacas e pulmonares, entre outras. 

Infográfico: Vanessa Adna e Almir Rafael

A Inaptidão

A estudante de biomedicina Izabele Fernandes, procurou o Hemoam para realizar uma doação motivada pela reposição e vinculada a uma paciente.

“Uma colega estava precisando porque ia fazer uma cirurgia, muitas pessoas que vão fazer cirurgia precisam e eu quis ajudar”, afirmou. Porém, a doação não foi possível e a estudante foi barrada na primeira etapa da triagem. “Meu eritrócito tava baixo, por isso eu não pude doar. Tem uma média, tinha que estar em 40 e o meu estava em 36, foi por isso”, explicou.

A estudante relatou surpresa com a quantidade de pessoas que também não conseguiram realizar o procedimento de doação.

“Eu sempre acompanho no Instagram do Hemoam e o banco de sangue está muito baixo, sem doadores. No dia que eu fui, tinha bastante gente, mas muitas pessoas, assim como eu, não conseguiram doar. Muitos por doenças, por estarem em jejum ou não ter a quantidade de eritrócito (glóbulos vermelhos) exata”, finalizou Izabele.

Um estudo realizado e apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Aplicadas à Hematologia, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) em convênio com o Hemoam, destacou que o jejum, a hipertensão e o comportamento sexual de risco estão entre as principais razões que levam à inaptidão de candidatos à doação de sangue no estado.

Entre 2017 e 2019 foram analisados 87.463 prontuários, revelando que 16.627 pessoas, o equivalente a 19,2% dos candidatos, não atenderam aos critérios exigidos pelo Ministério da Saúde. A análise utilizou dados do sistema HEMOsys, que organiza os processos de coleta e distribuição de sangue no hemocentro amazonense. 

Os critérios divulgados nas redes sociais e no site do hemocentro não esclarecem ao público todas as causas que impedem as doações, e muitas vezes o voluntário só descobre na hora da entrevista que não está apto a doar.

A enfermeira Graciela Rivera Chavéz, responsável pela pesquisa, explicou que o jejum é uma questão cultural, e as pessoas associam a doação de sangue a exames laboratoriais, o que gera um certa confusão. ”Por falta de informação, o doador chega em jejum ou com uma refeição inadequada, resultando em inaptidão temporária de apenas um dia”, comentou Graciela, que também é mestra em hematologia.

Outro fator significativo identificado foi a hipertensão arterial. “A hipertensão respondeu por 4.925 casos de inaptidão, representando 29,6% das causas documentadas”, detalhou o estudo. Esse dado reflete a alta prevalência de doenças crônicas não controladas na população. Em terceiro lugar, o comportamento sexual de risco, incluindo a frequente troca de parceiros, também contribuiu de forma expressiva para os índices de inaptidão.

“Foram registrados 2.981 casos ligados a esse fator, correspondendo a 17,9% do total”, apontou a pesquisa. Esses critérios seguem diretrizes rigorosas do Ministério da Saúde, que buscam garantir a segurança do sangue coletado.

Fatores adicionais como o uso de determinados medicamentos, peso corporal insuficiente, tatuagens recentes e doenças infecciosas também estiveram entre os impedimentos. ”O uso de medicamentos foi responsável por 1.745 casos, enquanto o peso insuficiente e as doenças infecciosas somaram 1.344 e 1.234 casos, respectivamente”, informou o estudo. Lana Sulamita, gerente de triagem e coleta do Hemoam, destacou que a maioria das inaptidões é temporária. “O objetivo não é descartar o doador, mas garantir a segurança de quem doa e de quem receberá o sangue”, afirmou.

A assessoria do Hemoam esclarece que o impedimento temporário no caso de tatuagem dura o período de 6 meses e serve para impedir a transmissão de doenças. “O período de espera após fazer uma tatuagem é uma medida de segurança obrigatória para reduzir o risco de transmissão de doenças infecciosas pelo sangue, como hepatite”, afirmou a assessoria em mensagem via rede social. Esse período é chamado de ‘janela imunológica’ e serve para prevenir contaminações decorrentes de protocolos incorretos durante a tatuagem.

“Embora a maioria dos estúdios de tatuagem sigam práticas seguras e higienizadas, como o uso de agulhas aplicadas e materiais esterilizados, existe uma pequena chance de contaminação cruzada ou infecção se os protocolos não forem seguidos corretamente”, explicou a assessoria.

A pesquisa também analisou o perfil sociodemográfico dos doadores. Moradores de áreas nobres apresentam maior índice de inaptidão. “Indivíduos com maior poder aquisitivo somaram 41,3% dos casos de inaptidão registrados”, revelou a pesquisa. 

Um estudo complementar, realizado no Banco de Sangue de Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, mostrou que fatores como hipertensão, hematócrito elevado e uso de medicamentos de uso contínuo são mais comuns entre pessoas de maior poder aquisitivo. Esses dados indicam que, embora tenham acesso ampliado a serviços de saúde, populações com rendas mais altas enfrentam condições associadas ao estilo de vida urbano e sedentário, além de dietas ricas em alimentos ultraprocessados.

Em Manaus, a maioria dos doadores analisados com inaptidão residiam na zona norte, com 22,99%), seguidos na zona sul (18,69%) e Oeste (16,99%). As Zonas Leste, Centro-Oeste e Centro-Sul apresentaram índices menores entre 12,86% e 13,41%. Segundo o estudo, “as maiores taxas de inaptidão foram observadas nas zonas Centro-Sul e Centro-Oeste, consideradas áreas mais nobres e com população envelhecida, o que contribui para o maior índice de inaptidão”.

A pesquisa traz à tona desafios de saúde pública que interferem diretamente na manutenção dos estoques de sangue. A falta de informação e autocuidado insuficiente tornam-se barreiras para ampliar o número de doadores aptos, comprometendo o atendimento às demandas urgentes da população. 

“Estudos acerca dos motivos que levam à inaptidão durante a doação de sangue e a associação com fatores sociodemográficos e comportamentais continuam sendo a melhor alternativa para acompanhar as mudanças no padrão deste comportamento pró-social”, afirmou Graciela Rivera Chavéz. Com base nos dados coletados, especialistas reforçam a necessidade de campanhas educativas mais abrangentes para reduzir os índices de inaptidão e sensibilizar novos doadores.

*Acadêmicas do Sexto Período de Jornalismo da FIC-Ufam. Esta reportagem foi desenvolvida como trabalho final da disciplina de Jornalismo Científico, sob a orientação do prof. Me. Gabriel Ferreira.

Foto: Almir Rafael

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