Os boletins diários da covid

Numa breve pesquisa no site da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM), encontrei o primeiro boletim da Covid-19 no Amazonas. Foi no dia 2 de abril de 2020, 205 casos confirmados e 2 mortes, entre elas a de Geraldo Sávio, o parintinense que faleceu no dia do meu aniversário.

Aquele boletim apresentava os casos da doença registrados no interior do estado, a quantidade de pacientes internados, na rede pública e privada. Tudo era número, sendo um boletim, não havia ali a meu ver um pingo de sensibilidade. Para o contexto da época, era inevitável.

Mas quando você passa a acompanhar, boletim por boletim, diariamente, não tem como deixar de se questionar, se aquilo ali moralmente era certo. Parecia que os doentes não eram mais seres humanos, mas sim números, e que só aumentavam com o passar dos dias.

O sentimento era de angústia, mas eu tinha que trabalhar.

Me recordo que toda tarde, era hora de novo boletim, divulgado em transmissão pela página da FVS-AM. Como era preciso agilidade para sair na frente e divulgar alguma novidade ali, sempre recebia a orientação de deixar um texto base no WordPress para atualizar com as informações que seriam divulgadas no boletim. A porta voz na maioria das vezes era Rosemary Pinto, a diretora-presidente da fundação.

A partir dos dados revelados, eu atualizava o texto, sempre com total de casos, possíveis mortes, que torcíamos para que não ocorressem. No entanto, a situação continuou piorando, e os boletins vinham cada dia mais carregado de tristeza, morte e desespero.

Os números saltavam na tela do computador e eu tinha que lidar todo santo dia com aquilo. Havia momento para analisar friamente aquelas informações, mas havia dia que era difícil de suportar.

Aprendi a fazer análise de todos aqueles números, um jornalismo de dados. Lembrei dos cálculos de porcentagem do ensino fundamental. Foi preciso muito sangue frio para encarar aquele período.

E nesse meio, os boletins continuavam chegando, em formato PDF, literalmente maiores, devido a quantidade de informações que o governo e as instituições buscavam detalhar para de alguma forma tranquilizar a população mostrando a realidade, mas pelas circunstâncias era impossível.

Me recordo de quando o site que eu estava trabalhando criou um mapa do coronavírus, com informações detalhadas dos casos e mortes pela doença em todos 62 municípios do Amazonas.

Por várias vezes, eu tive que atualizar aquele mapa. Havia dentro da plataforma, o nome de cada município com os números ao lado. 

O mapa de cor vermelha, que lembrava o sangue, uma cor forte, remetia a uma tragédia que estávamos vivendo.  Pelas informações que chegavam até nós, era muito desesperador e estava cada vez mais cansativo.

Nunca contei tanto na minha, fiz inúmeros cálculos, pois era preciso. Conferi diversos boletins para verificar quais municípios estavam a mais dias sem nenhum um caso da doença ou sem mortes. Era reconfortante, saber que em algum lugar do Amazonas, tudo estava sob controle. Aparentemente não havia sequer casos subnotificados.

Mas, a realidade era duríssima. Por estar ainda no ano de 2020, nem imaginávamos o que estava por vir depois que a onda de contaminação e mortes pareceu diminuir até acabar. E isso, eu estava vendo nos boletins. Não conseguia imaginar que algo pior viesse a tona, mas veio, como um desastre sem precedentes.  Disso, eu tratarei em breve, contando o derradeiro mês de fevereiro de 2021. Acredito que o pior da história do Amazonas.

Agora, nessa recordação dos boletins, aquele cansaço mental que se transformava em físico também daquele ano de 2020, parece voltar só de escrever aqui sobre aquela experiência, que eu nunca vou esquecer.

Você deve perguntar, como é que um jornalista em homeoffice numa pandemia pode falar sobre estar cansado? Pois bem, eu não desejo a ninguém passar por isso. Porquê uma coisa eu garanto! Cansou demais, e espero não ter que viver tudo isso de novo. É o que vou reforçar aqui ao que escrevi anteriormente: “é preciso entender o jornalismo além da teoria, técnica e da prática. É preciso refletir e os nossos sentimentos, mesmo em ofício de repórter, não podem ser ignorados”. E acrescento ainda, como seres humanos, não podemos desumanizar o outro, independente de sua condição, mesmo que a vida de pessoas estejam representadas em números num boletim, com algumas tabelas, com divisão de cores e um fundo branco.

Por isso, pense bem antes de lidar com números, ainda mais quando se tratar de vidas. Reflita primeiro, sempre.

Foto: Reprodução

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