Igarapé Água Branca promove educação ecológica e resiste a degradação ambiental

Por Ester Silva e Letícia Victória*

Se perguntássemos aos jovens de 15 a 35 anos o que vem à mente quando ouvem a palavra “Igarapé”, eles provavelmente responderiam algo como cursos d’água no meio da cidade, cheios de lixo e com cheiro incômodo. A pergunta feita por Jó Farah, coordenador da ONG Mata Viva, à todos os jovens que visitam a ONG é um pouco diferente, mas fornece
um panorama preocupante na mesma medida “quantos igarapés limpos você viu durante toda sua vida?” ele indaga.

Durante mais de 20 anos, a resposta tem sido a mesma: nenhum. Esse é o cenário que se constitui a cidade de Manaus, palco de grande biodiversidade e de nascentes riquíssimas. Na atualidade, as nascentes são foco de muito lixo e desmatamento desenfreado, realidade impulsionada ao longo dos anos pelos órgãos reguladores e, em tese, de proteção ambiental.

Em meio a esse panorama, temos o Igarapé Água Branca, o último igarapé vivo de Manaus. O Água Branca se tornou um símbolo de resistência da sociedade civil, protegido inicialmente pelos moradores do entorno da área e posteriormente por uma rede de “amigos do igarapé”, pessoas que vivem em diferentes partes do mundo e tem o intuito de colaborar com a preservação da natureza.

Localizado no bairro Tarumã, zona oeste de Manaus, o igarapé Água Branca nasce dentro de uma Área de Preservação Permanente (APP), no entorno do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes. Isso garante proteção à sua nascente, embora o restante do percurso, com mais de 7 km, esteja sob constante ameaça.

Jovem em sessão de terapia às margens do igarapé. Foto: Almir Rafael

A todos que visitam o Água Branca, o jornalista, ativista e grande responsável por proteger o igarapé, Jó Farah, busca fazer vários questionamentos que os levem a refletir sobre a atual situação ambiental de Manaus “Vou fazer uma pergunta pra vocês: quantos de vocês já tomaram banho nos igarapés de Manaus?”. As provocações evidenciam não somente a atualidade, mas o futuro do nosso Estado e a perspectiva que essa geração de crianças e adolescentes jamais conheçam a Amazônia pelo que ela deveria ser: um centro de riquezas naturais.

Em uma cidade onde a chuva pode dificultar a respiração por conta do acúmulo de lixo nos bueiros e esgotos, a realidade dos igarapés de Manaus é alarmante. Os cursos d’água que antes eram símbolo da vida amazônica, hoje apresentam esgoto, lixo e mau cheiro. Igarapés como o Mindu, Tarumã-Açu e Matrinxã tornaram-se referência de degradação ambiental.

Segundo a Secretaria Municipal de Limpeza Pública (Semulsp), somente em 2023 foram retiradas mais de 10.700 toneladas de lixo de cerca de 100 igarapés, córregos, orlas e praias de Manaus, o equivalente a 29,4 toneladas de resíduos por dia. A área atingida chega a 78,5 km², o que corresponde a mais de 11 mil campos de futebol, no entanto, mesmo que o ano de 2025 esteja na metade, o relatório sobre o ano de 2024 ainda não foi divulgado.

O Água Branca contribui com água limpa para a bacia hidrográfica do Tarumã-Açu, mas o sistema também recebe o deságue de igarapés como o Matrinxã e o Bolívia, que passam ao lado do lixão da cidade e carregam poluentes como chorume, um líquido tóxico proveniente da decomposição do lixo.

Bacia hidrográfica do Tarumã-Açu em relação a microbacia do igarapé Água Branca. Fonte: Artigo Microbacia do Igarapé Água Branca como uma das unidades básicas para o planejamento e gestão sustentável da bacia do Tarumã em Manaus

A luta pela preservação do Água Branca começou em 2002, com a criação da Organização Não Governamental (ONG) Mata Viva, fundada por Jó Farah e pelo jornalista Marcos Vasconcelos. “É surreal uma geração inteira de manauaras que nunca viu um igarapé limpo na vida. Imagina as crianças que eu recebo aqui?”, instiga Farah.

Jó Farah, coordenador da ONG Mata Viva. Foto: Almir Rafael

Natureza Silenciada: A Fauna Esquecida

A destruição da vegetação impacta diretamente a fauna local. O Tarumã, considerado o “berço das águas”, sofre com o desmatamento contínuo. A situação afeta as trilhas naturais feitas pelos animais e compromete a alimentação. “Eles acabam morrendo de fome até conseguirem criar uma nova trilha”, alerta Farah.

A ONG também chama atenção para espécies ameaçadas como o Sauim-de-Coleira, encontrado apenas no estado do Amazonas. A perda de habitat coloca a espécie em risco de extinção. “Aí vem essa hipocrisia com cachorro e gato, que não podem ser maltratados, mas e o Sauim, que está sendo enterrado vivo? Os milhares de pássaros que perdem suas casas
quando desmatam? Cadê os protetores desses animais?”, questiona o ativista.

O desaparecimento de espécies como o Sauim-de-Coleira impacta a cadeia alimentar, já que ele controla populações de animais peçonhentos. Com poucos recursos e quase nenhuma ajuda de órgãos competentes, o Mata Viva sobrevive há mais de duas décadas. Apenas uma organização estrangeira do Reino Unido contribuiu financeiramente, com uma
doação de 5 mil dólares. A contribuição permitiu a criação de uma trilha ecológica que serve como ‘sala de aula verde’, envolta pela diversidade biológica da Amazônia e voltada para escolas da rede pública.

Sauim de Coleira encontrado no entorno do Igarapé Água Branca. Foto: Divulgação ONG Mata Viva.

A criação da trilha ecológica busca despertar a inconformidade, o senso crítico e a consciência ambiental nessas crianças que moram perto de esgotos e igarapés poluídos, para evitar o descaso e a replicação de atitudes que degradam a natureza. Durante o trabalho com esse público, as crianças são ensinadas de forma lúdica. A ONG conta com o trabalho do biólogo Reney Figueredo e do ator Chico Kaboco.

Reney compartilhou como acontece essa experiência: “É um trabalho incrível, conseguimos perceber o olhar curioso e surpreso com cada passo das crianças na trilha. Para elas parece até um novo mundo, essa importância das árvores, da água limpa e de todas as interações dos animais e seus nichos ecológicos naquela área”.

A Escola Cuieiras é uma das unidades de ensino que mantém parceria com o projeto. A instituição, que trabalha uma abordagem na qual o ambiente é o terceiro professor, reconhece a importância de manter as crianças em contato com a natureza. Shayane Chaves, professora de artes e mãe de um aluno, compartilha dessa visão: “Acho que ensinar sobre o
valor do meio ambiente na infância vai além de ensinar a preservar, é cultivar uma relação de
pertencimento”, opina a professora.

O contato com o igarapé Água Branca transmite o sentido e a importância de cuidar da natureza. “Quem cresce amando a floresta, não precisa que lhe digam para protegê-la, faz isso por convicção, não por obrigação” afirma Shayane.

O igarapé representa não apenas uma ação de resistência, mas também a esperança de um futuro ambiental melhor. “Representa a possibilidade de um futuro onde a natureza não é apenas cenário, mas sujeito da história. Desejo que meu filho cresça num mundo onde águas limpas sejam um direito, e não um privilégio”, conclui ela.

Crianças na trilha ecológica. Foto: Divulgação ONG Mata Viva.

Nesse sentido, Reney, juntamente com os outros integrantes da trilha, se sentem esperançosos de que essas ações possam ter impactos reais, uma vez que o igarapé é um refúgio e um laboratório que pode servir de exemplo para cada área verde da cidade de Manaus. “Esperamos adultos mais conscientes com a causa ecológica que é tão frágil e relevante na atual sociedade. O mundo precisa de humanos mais respeitosos com a natureza e com seus recursos, que não são infindáveis e que precisam ser utilizados com raciocínio e cuidado”, finaliza ele.

Apesar desses esforços, a situação permanece crítica. O avanço de empreendimentos licenciados pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), ameaça diretamente áreas de preservação. “Dois meses atrás encontramos um igarapé igual à Água Branca, protegido por uma APP que está extremamente ameaçada, mas ainda intacta”, revela
Farah. Ao mesmo tempo, no caminho que leva até o igarapé é possível encontrar placas de construções com licenças para degradar as áreas no entorno. Tentamos contato com o IPAAM para entender os motivos que levam a liberação de construções nas proximidades da área preservada, mas não obtivemos respostas.

Empreendimentos no entorno do igarapé, com placas que informam a permissão do IPAAM. Foto: Almir Rafael.

Além disso, intervenções urbanas realizadas pelo Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (Prosamim) também deixaram cicatrizes profundas. Segundo estudo de 2009 do pesquisador Máximo Alfonso, os igarapés do Quarenta, Educandos, Bittencourt e Chico Mendes foram modificados com canalização, retificação e aterros, perdendo suas curvas.

A doutora em Geografia Física e professora da Ufam, Adorea Rebello, afirma que essas intervenções urbanas envolvem formas equivocadas de planejamento territorial.

“As intervenções se manifestam desde o século XIX, quando os rios dessa cidade foram considerados obstáculos aos processos de expansão da estrutura e da superfície de áreas pavimentadas, e obstáculo para a ampliação das vias e acesso às moradias populares, como a construção do bairro do Parque Dez e posteriormente Cidade Nova”, complementa.

No livro ‘Um Olhar Pelo Passado’ (1897), o autor Bento Aranha, traz um relato do aterramento dos rios: “ o igarapé do Espírito Santos está transformado atualmente na Avenida Eduardo Ribeiro, dos Remédios está sendo alterado para a avenida 13 de Maio, e o de S. Vicente acha-se em partes já aterrado na sua boca oriental e na sua nascente na extrema
ocidental da rua Saldanha Marinho”. O trecho exemplifica a quantidade de igarapés afetados pela questão da urbanização mal planejada.

Quanto ao Prosamim, a professora relata que o programa estabeleceu a retificação dos leitos e canais. “Esse procedimento aumenta a vazão da água em pontos determinados e gera o extravasamento e transbordamento da água das chuvas e dos canais hidrográficos, ou seja, o caminho para onde a chuva é transportada ao atingir a superfície do solo”, explica ela.

A repercussão em torno do igarapé fez com que pessoas como Lia Mandelsberg escolhessem viver na região. De origem paulistana, Lia se mudou para Manaus após o nascimento da filha. “Vim pra essa região depois do nascimento da minha filha pra poder proporcionar isso a ela, que é lazer, mas também uma questão de saúde. É muito importante o bebê estar em contato com a natureza”, relatou.

Jó também relatou a visita de um estrangeiro ao igarapé, após conhecer a página da ONG em um site e no Instagram. O visitante chegou ao local com a ajuda do tradutor do Google, informando que tinha ido conhecer o igarapé. Depois de mergulhar, afirmou: “agora sim, conheci Manaus”.

Nascente preservada: a chance de recuperação dos igarapés de Manaus

A extensão dos igarapés dentro da cidade de Manaus virou uma opção para descarte irregular de lixo, no entanto, esses corpos d’água só podem ser considerados mortos se as nascentes estiverem contaminadas. Atualmente algumas dessas nascentes ainda estão protegidas em áreas, como a Associação de Docentes da Universidade Federal do Amazonas (Adua), onde nasce o igarapé do Mindu, e dentro do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, que também abriga a nascente do igarapé do Gigante.

Diante desse cenário, Jó acredita que há esperança para a recuperação total desses igarapés. “Esses igarapés que têm nascentes protegidas podem ser recuperados totalmente, basta tirar as pessoas da margem e fazer o plantio da vegetação”, ressalta o jornalista.

Nascente do Igarapé Água Branca. Foto: Almir Rafael

Sergio Duvoisin, professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e coordenador do Programa de Monitoramento de Água, Ar e Solos do Estado do Amazonas (ProQAS), acredita que a recuperação dos igarapés em Manaus é possível, especialmente devido ao intenso volume de águas na região, o que favorece a renovação natural dos corpos
d’água.

“Com o regime de águas que a gente tem aqui, eu acredito que num espaço muito curto de tempo, a gente consiga recuperar. O problema é fazer as ações necessárias para que as fontes poluidoras não cheguem mais nos igarapés aqui que banham Manaus”, destacou.

Segundo ele, a maior parte da poluição vem do esgoto doméstico, especialmente nas bacias do São Raimundo e Educandos, as mais impactadas. “Se a gente conseguisse fazer com que todo o esgoto doméstico de Manaus fosse tratado, isso resolveria 90% dos problemas dos igarapés”, afirmou.

Mesmo com as idealizações a respeito do tratamento de esgoto da cidade, Manaus está longe de fornecer o saneamento para toda a população, segundo a Águas de Manaus.

“Atualmente Manaus tem 34% de cobertura do serviço. Nos próximos dois anos este número será de 60% e, em 2033, o sistema será universalizado”, projeta a concessionária. A empresa reconhece a importância dos serviços de coleta e tratamento de esgoto ao afirmar que um dos principais benefícios é a contribuição para a preservação e recuperação dos corpos hídricos.

“Manaus é uma cidade cortada por igarapés e o avanço do esgotamento sanitário reflete diretamente na qualidade de vida de todo ecossistema”, esclarece a instituição. Ainda assim, a cobertura não contempla nem metade da população manauara, o que evidencia uma realidade na qual as pessoas possuem qualidade de vida fracionada.

Sobre os impactos da urbanização nos igarapés, Sergio Duvosin aponta que o desequilíbrio físico-químico é evidente, com o pH e a condutividade elétrica sofrendo alterações causadas pela poluição. Ele explica que quando o pH chega perto de 7, o impacto antrópico é enorme, uma vez que normalmente essas águas têm o pH ácido, baixo.

Além disso, o professor ressalta que muitas estações de tratamento de esgoto existentes em Manaus nem sempre funcionam adequadamente, o que dificulta a melhora da qualidade da água. Por isso, reforça a importância do saneamento básico e do tratamento de esgoto para resolver a maior parte dos problemas ambientais enfrentados pelos igarapés da
cidade.

Diante da possibilidade de recuperação dos igarapés com nascentes ainda preservadas, como defende Jó Farah, o planejamento se torna uma ferramenta crucial. Nesse contexto, iniciativas como a do Censipam, que desenhou a bacia hidrográfica do igarapé Água Branca, mostram como o mapeamento técnico pode orientar ações eficazes de conservação.

Com o desenho da bacia hidrográfica, fica mais fácil entender por onde a água corre, onde estão os problemas e o que precisa ser protegido. “O igarapé Água Branca é, até agora, o único em Manaus com esse mapeamento completo”, ressaltou.

O igarapé também é o único monitorado pela concessionária Águas de Manaus, responsável pelo serviço de água, coleta e tratamento de esgoto em Manaus. Segundo a concessionária, o monitoramento da qualidade da água do igarapé Água Branca iniciou em junho de 2023 de maneira cooperativa com a ONG Mata Viva. “As análises são realizadas mensalmente. Equipes da concessionária vão, mensalmente, in loco para coletar amostras, sempre em três pontos do curso hídrico (nascente, meio e foz)”, explica.

Coleta de amostra mensais. Foto: Divulgação Águas de Manaus

O fato do Igarapé Água Branca ser o único com mapeamento e monitoramento evidencia a efetividade da movimentação social. Entre as análises realizadas pela companhia Águas de Manaus constam análises instantâneas que apontam resultados como oxigênio dissolvido, qualidade da água, pH e condutividade elétrica. Além disso, as amostras são analisadas pelo laboratório da concessionária e por outro, terceirizado, para comprovação do resultado.

O processo de monitoramento deveria ser realizado em todas as fontes de água em Manaus, relegadas ao descaso e transformadas em lixeiras a céu aberto. O trabalho que está sendo realizado no igarapé Água Branca, devido a pressão civil dos amigos do Igarapé e da ONG Mata Viva, deveria ser implementado em outros cursos d’água da capital. De forma evidente, o poder público não se mobiliza a não ser que a população pressione. Nesse caso, é preciso que a sociedade manauara se conscientize e manifeste como defensores das águas e da biodiversidade amazônica.

Comparação entre o Igarapé Água Branca e o Igarapé do Mindú. Fotos: Almir Rafael

*Reportagem produzida na disciplina de Jornalismo Ambiental (sob a supervisão do prof. Me. Gabriel Ferreira)

Entrevistas: Anne Karoline e Letícia Victória; Edição: Vanessa Adna

Foto: Almir Rafael

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