Falta de Saneamento básico expõe os mais pobres a doenças e insalubridade

Por Vanessa Adna*

Noemi Rocha, 18, tinha apenas 1 ano quando contraiu rotavírus em Silves, município onde nasceu e morou com os pais. A doença foi adquirida a partir do contato com a água contaminada e afetou também uma outra criança que residia na casa da família. Na ocasião, as crianças precisaram ficar internadas por infecção gastrointestinal e a rotina das famílias virou do avesso. Apesar dos cuidados reforçados com a limpeza que a mãe de Noemi assumiu para dispersar a infestação de moscas do lugar e assim tentar evitar doenças, a falta de saneamento básico foi preponderante. A condição da água na região onde viviam era muito precária.

Um relatório divulgado pelo Instituto Trata Brasil em julho de 2024, mostra que, para milhões de brasileiros, o cenário atual não é diferente do vivenciado pela família de Noemi. De acordo com o estudo “Avanços do Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil de 2024”, realizado em parceria com a GO Associados, cerca de 32 milhões de pessoas não têm acesso à água potável no Brasil. A quantidade de brasileiros afetados pela falta de coleta e tratamento de esgoto é ainda mais expressiva: 90 milhões. Os dados demonstram a morosidade para ampliar os serviços de saneamento básico no país, mesmo após ser sancionada a Lei Nº 14.026, de 2020, com o objetivo de acelerar, aprimorar e universalizar as condições de saneamento para a população.

A ausência de condições primárias de infraestrutura implicam na degradação da qualidade de vida e na exposição das pessoas a doenças infecciosas e parasitárias. A ocorrência de doenças infecciosas, como as hepatites virais, e parasitárias, como a ascaridíase, são potencializadas em lugares onde não existe drenagem da água, tratamento de esgoto e limpeza de potenciais criadouros de mosquito, como terrenos baldios. A falta de limpeza urbana, com a coleta seletiva, também deixa a população à mercê de doenças, além da exposição ao mau cheiro e ao acúmulo de lixo, acionando novos vetores de doenças: ratos, caramujos e baratas.

A exposição e proliferação dessas doenças está diretamente associada a condições de saneamento deficitárias e atinge principalmente pessoas de baixo nível socioeconômico, moradores de áreas periféricas, superpopulosas ou esquecidas pelo Estado. As doenças causadas pela falta de saneamento são conhecidas como Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs). Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgadas em janeiro de 2024, dão conta que 1,7 bilhão de pessoas estão expostas ao risco de contrair essas doenças, que resultam em 200 mil mortes por ano. No Brasil, cerca de 30 milhões estão sujeitos ao risco de contrair DTNs, de acordo com o Ministério da Saúde.

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O que são Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs)

A OMS define as Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs) como sendo um conjunto de doenças que ocorrem em países de clima tropical e subtropical, resultantes da condição de vulnerabilidade social das pessoas que adquirem essas doenças, como a ausência de serviços de saúde, saneamento básico e acesso à água potável. O grupo de doenças recebe esse nome porque se manifesta principalmente em regiões negligenciadas pelo Estado. 

Em entrevista concedida ao Portal da Ciência, a médica e diretora do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Tânia Adriano Jorge, explicou como as doenças negligenciadas são acarretadas por uma série de questões sociais.

“Onde falta saneamento básico há sempre condições de pobreza, que se caracterizam por baixos salários, precárias condições de moradia e de educação, condições todas propícias para ocorrência das doenças associadas à pobreza e retroalimentadas por elas”, afirmou. A médica também ressaltou que a ausência de saneamento básico está diretamente ligada à transmissão de doenças infecciosas transmitidas por água em via fecal-oral.

O grupo de DTNs contempla mais de 20 doenças, sendo que as mais recorrentes no Brasil são: Doença de Chagas, Esquitossomose, Hanseníase, Leishmaniose, Raiva Humana e Tracoma.

A oncocercose e o acidente ofídico também são doenças comuns que integram as DTNs. Além de decorrentes do descaso público e das más condições de saneamento, a falta de uma cobertura vacinal completa potencializa a epidemia de algumas dessas doenças. A raiva humana é um exemplo de doença que pode ser evitada com a vacinação das pessoas e de animais de rua, enquanto a hanseníase, embora ainda não tenha um imunizante, pode ter os riscos de contágio e sintomas abrandados pela vacina BCG. 

Doenças Parasitárias

Segundo a Fiocruz, a doença de Chagas é a doença parasitária mais letal da América Latina, afetando cerca de 6 milhões de pessoas, com estimativas de 14 mil mortes por ano. Um levantamento realizado em 2023, pelo Ministério da Saúde, estima que aproximadamente 70 milhões de pessoas vivem em regiões propícias à infecção pelo parasita Trypanosoma cruzi. O inseto barbeiro, hospedeiro do parasita, pode ser encontrado na mata e em domicílios, escondido em frestas, buracos nas paredes, nas camas e colchões.

Os parasitas fazem parte de diferentes grupos evolutivos e vivem associados a outros seres vivos denominados hospedeiros, dependendo desses seres para alimentação, transporte e reprodução. As doenças parasitárias afetam grande parcela da população brasileira e algumas dessas doenças são consideradas endêmicas, se manifestando apenas em regiões específicas. A malária, transmitida pela fêmea do mosquito regionalmente conhecido como carapanã, é um exemplo de doença parasitária cuja ocorrência é concentrada em toda a região Norte e nos estados do Maranhão e Mato Grosso.

Em países tropicais, as doenças parasitárias aparecem como uma das maiores causas de morbimortalidade, segundo a bióloga e pesquisadora de parasitologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Amazonas (ICB/Ufam), Ana Lúcia Gomes. “Quando elas não são deletérias à saúde humana ou animal, constituem-se em enfermidades que debilitam, comprometem a capacidade cognitiva, o desenvolvimento físico ou a capacidade laboral do organismo parasitado”, explicou a especialista.

Essas doenças apresentam diferentes sintomas, tratamentos e vetores, mas costumam acontecer predominantemente em lugares com a mesma condição: saneamento básico inexistente, escassez de água potável e alimentação precária.

“São doenças extremamente negligenciadas pelos governos e têm grande importância para a saúde pública por estarem diretamente associadas à pobreza e a condições de vida inadequadas”.

Ana Lúcia, bióloga e pesquisadora de parasitologia pelo Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Ufam.

As doenças parasitárias mais recorrentes nas regiões esquecidas pelo poder público são as geohelmintíases, um grupo de doenças parasitárias intestinais com grande prevalência em crianças e ocorrência nas cidades cujo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é mais baixo. As helmintíases são causadas principalmente pelo parasita Ascaris lumbricoides, conhecido popularmente como lombriga. 

Os parasitas das helmintíases precisam passar pelo solo no seu processo evolutivo, e esse fator contribui para propagar a doença, cuja transmissão acontece principalmente pelo consumo de legumes e frutas mal higienizados e a ingestão de água contaminada. “Essa passagem pelo solo contamina os corpos d’água e consequentemente os alimentos. Esta é uma estratégia muito inteligente que os parasitas desenvolveram para se disseminar com mais sucesso”, concluiu a bióloga.

Um problema social

Não é coincidência que doenças parasitárias, infecciosas e de veiculação hídrica atinjam populações mais vulnerabilizadas. A incidência dessas epidemias também não se restringe ao interior, zonas rurais ou isoladas, mas ocorrem também em centros urbanos, concentradas em bairros ou zonas periféricas. A escolha por esses lugares não é criteriosa, na maioria das vezes as pessoas precisam recorrer a áreas de risco ou sem infraestrutura para morar. Além de ser um indicador de desigualdade, também reflete uma situação de abandono.

A moradora Nádia Filgueira revela a situação de descaso público com as pessoas que vivem no beco do Dilúvio, no bairro Petrópolis, zona sul de Manaus. Vivendo às margens de um igarapé poluído, a comunidade sofre com transbordamentos, iminência de doenças, o aparecimento de insetos e com o mau cheiro decorrente do lixo acumulado no igarapé.

“Durante as chuvas, isso aqui fica tudo alagado, nós moramos em risco, em vulnerabilidade social. A gente não quer pintura, a gente quer saneamento básico, infraestrutura”.  

Nádia Filgueira, moradora do beco do Dilúvio, em Petrópolis.

Os moradores já foram diversas vezes até a prefeitura reivindicar obras no local, como a implantação de tubulações e a continuidade de um rip rap inacabado, mas não obtiveram resultados, somente protocolos. Uma moradora, identificada apenas como Miriam, corrobora as acusações. “A nossa situação não é boa porque não tem saneamento básico. Aqui no igarapé, quando chove transborda, é rato, é o lixo que jogam. Isso vem acabando com a nossa casa, com os nossos terrenos”, revelou. 

Com o transbordamento do igarapé, até mesmo as muretas que os próprios moradores construíram para conter o avanço das águas foi afetada e agora apresenta rachaduras. “Por baixo tá tudo rachado essa mureta que a gente fez (sic), então traz água poluída. Com isso a gente já pegou micose, frieira, todo tipo de coceira. Quando chove ninguém sai de casa, porque fica horrível, fica uma lama preta de tão suja que vem”, finalizou a moradora.

O mesmo cenário é recorrente em outras regiões da cidade de Manaus, que lidam com igarapés que se transformaram em verdadeiros esgotos a céu aberto, devido a poluição e o descarte irregular de lixo e qualquer tipo de objeto inutilizado, como eletrodomésticos. Além disso, o despejo de esgoto e dejetos em alguns igarapés contribui para que aumente a insalubridade desses cursos d’água, precarizando ainda mais a situação de quem mora próximo.

Confira a entrevista com Nádia Filgueira

O mesmo cenário é recorrente em outras regiões da cidade de Manaus, que lidam com igarapés que se transformaram em verdadeiros esgotos a céu aberto, devido a poluição e o descarte irregular de lixo e qualquer tipo de objeto inutilizado, como eletrodomésticos. Além disso, o despejo de esgoto e dejetos em alguns igarapés contribui para que aumente a insalubridade desses cursos d’água, precarizando ainda mais a situação de quem mora próximo.

Uma questão longe der ser solucionada

O Ranking do Saneamento, realizado pelo Instituto Trata Brasil e divulgado em março de 2024, aponta que a questão do saneamento básico está longe de ser resolvida. Os dados alertam que a desigualdade também é regional, com as regiões Norte e Nordeste figurando entre os piores índices de tratamento de esgoto e acesso à água potável. No Brasil, apenas três municípios atingiram a universalização do saneamento, proposto pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico, sendo eles Maringá (PR), São José do Rio Preto (SP) e Campinas (SP).

Na análise, que leva em conta as cidades mais populosas do Brasil, Manaus aparece entre os 20 piores municípios em questão de saneamento, ocupando a 86ª colocação. Essa posição no ranking não é inédita: há dez anos a capital do Amazonas figura entre as piores colocações de saneamento básico, inclusive caindo 3 posições em relação ao levantamento de 2023, quando ocupou o 83º lugar. Os indicadores apontam que o atendimento de esgoto em Manaus atinge apenas 26,09%, com o índice de tratamento sendo ainda menor, de 21,79%.

Outras seis cidades da região Norte também aparecem com as piores coberturas de saneamento, sendo que Santarém (PA), Macapá (AP) e Porto Velho (RO) ocupam, respectivamente, as três últimas posições. Porto Velho chama atenção por apresentar apenas 1,71% de tratamento de esgoto, índice considerado baixíssimo e que distancia a capital da meta nacional de universalizar o acesso ao saneamento até 2033.

Veja o infográfico:

Infográfico: Anne Karoline Menezes

Soluções Alternativas

Enquanto a ampliação dos serviços de saneamento básico aparece como uma realidade distante, com estudos e levantamentos apontando números alarmantes de brasileiros sem acesso à água potável, sistema de esgotamento sanitário, água encanada e limpeza urbana, a população precisa recorrer a outras alternativas para se resguardar das inúmeras doenças e infecções provenientes da falta de infraestrutura.

Os especialistas consultados concordam que a solução mais eficaz é o acesso amplo a uma infraestrutura adequada. Enquanto essa meta não se concretiza, os entrevistados apontam outros mecanismos para driblar a falta de saneamento, o acúmulo de lixo e as doenças.

O professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB/Ufam) e mestre em ecologia, Welton Oda, atua no bairro do Coroado, zona Leste de Manaus, para reduzir as “lixeiras viciadas”, nome dado ao descarte irregular de lixo nas calçadas, ruas, terrenos baldios e margens de igarapés, causando acúmulo de resíduos e transtorno para os moradores. Como a coleta seletiva não é constante em algumas ruas e tampouco chega aos becos do bairro, a própria comunidade vem instalando Pontos de Entrega Voluntária (PEV), para tentar reduzir o descarte irregular. “A gente tem alguns lugares substituindo as lixeiras viciadas por um jardim, colocamos uns pneus pintados, umas plantas, e aí a população deixa de jogar lixo ali, o que não resolve totalmente a questão, mas em alguns lugares tem feito a diferença”, ressaltou.

O professor de biologia da Escola Estadual Solon de Lucena, Anderson Mota, indica uma alternativa científica para lidar com a poluição dos igarapés: o uso de fungos para eliminar substâncias tóxicas e poluentes.

O docente explica que alguns tipos de fungos já são utilizados na indústria de saneamento básico, já que apresentam funções, como a de absorver metais pesados, que ajudam na limpeza de córregos.

“Eles podem contribuir com a despoluição de pequenos rios, já que conseguem metabolizar alguns compostos que seriam tóxicos para a maioria dos animais. Os fungos filamentosos conseguem digerir certos compostos de bactérias anaeróbicas que vivem justamente em rios onde não tem saneamento básico, rios altamente poluídos”, explicou Anderson.

Para o médico infectologista, Noaldo Lucena, a educação sanitária nas escolas e em serviços públicos e privados são medidas importantes para conscientizar a população e fomentar sua adesão em ações preventivas de doenças.

O médico também salienta que existem práticas eficientes para tentar evitar doenças resultantes da falta de saneamento, e essas medidas podem ser aplicadas em casa.

“Lavar bem as mãos com água e sabão, antes e depois de ir ao banheiro, antes de ingerir qualquer alimento. Também o uso de água fervida ou filtrada, andar sempre calçado e  tomar as vacinas, como para hepatite A, por exemplo”, informou. Porém, é importante considerar que a falta de saneamento básico pode ser um empecilho até mesmo para o simples ato de lavar as mãos.

Ouça a entrevista com o professor Welton Oda:

*acadêmica do 5º período de Jornalismo da FIC-UFAM (trabalho realizado para a disciplina Jornalismo Digital, sob a supervisão da profa. Dra. Cristiane Barbosa e prof. Me. Gabriel Ferreira)

Fotos e vídeo: Anne Karoline Menezes

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